Breve
notícia do primeiro livro impresso em linguagem
Lúcio
Alcântara *
“Deus que julga as
obras e a intenção de cada um, julgue as nossas, pois o juízo do homem está
mais pronto a julgar a outrem que a si mesmo.”
Apologia de João
de Barros em lugar de prólogo
(Quarta Década
da Ásia)
O
mundo culto português foi surpreendido quando, em 25 de maio de 1965, o
professor José Vicente Pina Martins publicou artigo no “Diário de Notícias”
sobre a existência de um exemplar do Tratado
de Confissom impresso em português na cidade de Chaves no ano de 1489.
Descoberta esta devida ao livreiro Tarcísio Trindade, de Alcobaça, levada ao
conhecimento do mestre que a estudou em artigos especializados vindo a
publicá-la mais tarde em edição fac
similar diplomática, de 1973, precedida de minuciosa introdução.
Achados
como esse, comparável ao da Vita Christi
por Jaime Cortesão em 1920, são raros em bibliografia, ainda mais que o cimélio
encontrado nunca havia sido mencionado por quantos se debruçaram sobre a
história da tipografia e do livro em Portugal. Até então A Vida de Cristo, de 1495, era tido como o primeiro livro em língua
portuguesa, traduzido do latim, impresso na oficina de Valentim Fernandes e
Nicolau da Saxonia. O aparecimento do incunábulo revolucionou os estudos sobre
a origem e penetração da imprensa em Portugal ao abrir novas possibilidades de
investigação. À luz dos conhecimentos atuais, os judeus são considerados os
precursores da imprensa em terras lusitanas a partir do Pentateuco, Faro, 1487. Ao todo, segundo Cadafaz de Matos, somaram
quinze os livros publicados em hebraico até a expulsão dos judeus em 1497. Até
aqui não foi possível comprovar, como sugerem alguns estudiosos, a existência
de prelos cristãos anteriores aos judaicos. O Pentateuco (1487) e o Tratado
de Confissom seriam dois marcos a balizarem o nascimento da imprensa lusa e
o surgimento de publicações em vernáculo. Controvérsias sobre a localização da
primeira tipografia colocam Leiria, Guarda, Lisboa e, após a descoberta do Tratado de Confissom, Chaves, como
hipotéticas sedes, mas, de certeza, a primazia ainda cabe a Faro, comprovada
pela publicação do Pentateuco.
Ao
proceder a um meticuloso exame dos aspectos editoriais e gráficos do Tratado de Confissom Pina Martins
provocou uma revisão sobre os pródromos da imprensa portuguesa. A
partir da conclusão a que chegou, passou-se a admitir uma quarta via para sua
entrada no país, a espanhola, com eixo nas cidades de Zamora/Monterrey/Chaves,
seguida pelos impressores anônimos do Sacramental
e do Tratado de Confissom,
antecedente das outras três já mapeadas (1). A saber:
-
Barcelona/Braga, seguida por Johann Gherlinc.
-
Augsburgo/Sevilha/Lisboa, seguida por Valentim Fernandes.
-
Salamanca/Porto/Braga, correspondente ao itinerário de Rodrigo Álvares.
Possibilidade
esta antes ignorada a despeito da proximidade entre os dois países e da
presença da tipografia em Espanha desde 1472(1). Verdade que D. Manuel II, último
rei de Portugal, notável bibliófilo, autor do magnífico catálogo, Livros antigos portugueses da biblioteca de
sua majestade fidelíssima, já em 1929 estranhava “que catorze anos tivessem
decorrido entre a introdução da arte de Gutenberg em Espanha por oficiais
alemães e a sua entrada em Portugal pela mão de impressores hebreus”(4),
estranheza só satisfeita em 1965 pelas páginas do incunábulo flaviense,
exemplar único, achado fortuito em meio a um monte de livros velhos.
O
“livrinho”, como o chamou carinhosamente Pina Martins, é um pequeno in-quarto,
com trinta fólios e cinquenta e nove páginas impressas e um cólofon onde a
lacuna é a omissão do nome do impressor. Para além do livro em si, da
referência a Chaves como local da impressão, todo o resto se situa no terreno
movediço das probabilidades amparadas por inferências obtidas a partir de
apuradas pesquisas encetadas pelo reputado bibliólogo luso, removidas assim objeções
dissimuladas à sua tese. Um manual destinado a orientar confessores e
penitentes de certo teria boa acolhida entre os peregrinos de passagem por
aquela vila nortenha em trânsito para Santiago de Compostela.
Por
outro lado, os caracteres tipográficos empregados no Tratado, a disposição do texto em duas colunas, a filigrana do
papel, uma mão direita coroada por uma corola de seis pétalas, uma identidade
próxima entre as fórmulas do cólofon, aproximam-no das obras impressas por
Antonio Centenera com oficina estabelecida em Zamora. A partir das analogias
identificadas, foi possível supor que um impressor português tenha levado a
cabo o trabalho com limitados recursos tipográficos preteridos por Centenera na
vizinha cidade espanhola.
Segundo Luis Felipe Barreto, citado no Catálogo dos Quinhentistas Portugueses da
Biblioteca Nacional, a cultura discursiva do renascimento português resulta
de três grandes dinamismos – o escolástico, o humanista, o da expansão dos
descobrimentos. O predomínio cultural da escolástica se reflete no número
expressivo de títulos editados no período sob a égide ou de mecenas ao seu
serviço. Aliás, mesmo no período hebraico da tipografia portuguesa (1487 -
1497) apenas uma obra, o Almanach
Perpetuum, de Abrãao Zacuto, um compêndio de astronomia, não tinha caráter
religioso. Do total de 1.904 obras estampadas em Portugal no século XVI,
seiscentas e cinquenta de uma, ou seja, 34% delas foram de responsabilidade da
igreja (5).
Em relação aos incunábulos portugueses, dos trinta conhecidos, dez inserem
textos litúrgicos publicados com o apoio das autoridades eclesiásticas das três
dioceses mais importantes, Braga, Lisboa e Porto (3).
Foi
nesse ambiente de forte inspiração religiosa que surgiu o Tratado de Confissom, um guia para uso de confessores e penitentes,
espécime de literatura moral, mais profundo que outros do gênero (6). O livro
está dividido em duas partes, reservadas, a primeira, objetiva, ao confessor; a
segunda, subjetiva, ao penitente, para facilitar seu exame de consciência, precedidas
por um pródromo que alerta o juiz sobre suas obrigações e exorta-o a ser reto e
justo. Um manual estruturado com apoio em exemplos, de forma a não falhar na
revelação de pecados, e aplicação de penas segundo tabela canonicamente fixada.
Enérgica reprimenda à corrupção da igreja e abusos dos eclesiásticos. Curioso
que o livro conclua com orações
canônicas para as refeições, diferentemente dos congêneres, cujo costume das
terminações era uma preparação para a morte. Como se, absolvido dos pecados pela
confissão o penitente à mesa antecipasse a ceia do Senhor. A arte de viver e
conviver substitui a arte de morrer (5).
O
mérito do Tratado de Confissom,
segundo Pina Martins, é bibliográfico, por haver antecipado em seis anos as
primícias da tipografia lusitana. Nem seria de esperar maior valor literário em
livro escrito com o fito de instruir práticas religiosas. Da autoria presumida
de um eclesiástico, confessor e pregador, está vazado em um estilo seco, pobre
de imagens, não obstante revestido da “beleza de uma arquitetura sem ornatos” (5). Vale
ressaltar o léxico moderno com o emprego de palavras que sobrevivem até hoje.
Não
é desprezível a título de documento que expõe a confissão como instrumento de
controle social e revelador do comportamento do homem português no século XV.
A
afirmação de Sousa Viterbo de que “em bibliografia é muito difícil, se não
impossível, asseverar que se disse a última palavra sobre o assunto por muito
verossímil que seja”, cautela esposada por outros especialistas, veio a ser
confirmada a propósito da instituição do primeiro livro impresso em língua
vernácula. Quando a prioridade indiscutível estava atribuída ao Tratado de Confissom, sustentada por
fundados argumentos, eis que artigo assinado pela professora da Universidade de
São Paulo, Rosemarie Erika Horch, confere o primado a uma tradução portuguesa
do Sacramental, obra do espanhol
Clemente Sanchez de Vercial, saída do prelo em Chaves, no ano de 1488(11).
Conclusão esta retirada com base em investigação levada a efeito a partir de
exemplar depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro dada a conhecer em
1986. Segundo ela, após a publicação do Catálogo
dos Incunábulos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1957), surgiram
comentários sobre a natureza incunabular da referida publicação, alimentada
pela ausência no volume em estudo das folhas finais onde estariam as indicações
tipográficas. Não obstante o óbice comprobatório, Serafim da Silva Neto, em
1957, com base em informação colhida no Dicionário
Bibliográfico Português de Inocêncio Francisco da Silva, é taxativo ao
considerar que ele “tem as características de incunábulo”. É que, no verbete,
Clemente Sanchez de Vercial do aludido glossário, além das edições vernáculas
do Sacramental, datadas de 1502 e
1539, está reproduzido um comentário imputado ao conselheiro Francisco Freire
de Carvalho sobre ter visto na biblioteca do arcebispo de Lacedemônia e Vigário
Geral do pratriarcado, D. Antonio José Ferreira de Sousa, outro exemplar do
mesmo livro traduzido em português, impresso em 1488, que descreve em pormenor,
anotada inclusive a falta da folha inicial. Ao tomar como ponto de partida a
informação oferecida por Inocêncio, a pesquisadora localizou a obra do
conselheiro Freire Carvalho, intitulada Primeiro
Ensaio sobre a História Litteraria de Portugal, desde a Mais Remota Origem até
o presente tempo, Seguido de Differentes Opusculos, Que Servem para sua Maior
Illustração, e Offerecido aos Amadores da Litteratura Portuguesa em Todas as
Nações. Lisboa, Typ. Rollandiana, 1845, 8º de 445 págs. a qual cita
elementos constantes do Sacramental de
1488. Em seu texto reproduz o remate do livro onde vem em latim muito mutilado
a indicação do impressor e de Chaves como sede tipográfica, dados despercebidos
pelo autor da observação e o dicionarista. O cotejo feito entre o exemplar
descrito por Freire Carvalho e o da Biblioteca Nacional faz crer se tratarem
ambos da mesma edição restrita, a discordância às cores das letras capitulares.
Sem embargo da exaustiva apuração empreendida, não foi possível identificar o
tradutor nem afirmar com segurança o responsável pela impressão, possivelmente
um espanhol fixado em uma das cidades próximas a Chaves. Embora a autora não
tenha conseguido identificar os tipos do Sacramental
com os de nenhum tipógrafo contemporâneo, há um vínculo de interesses
topográficos com o Tratado de Confissom que
emprestou insuspeitada notoriedade tipográfica à cidade. Mais que isso, segundo
Artur Anselmo, pesquisador do assunto. Para ele, haveria entre as duas preciosidades
afinidade temática e técnica que remete ambas a uma provável origem comum
traduzida no papel usado e nos tipos de
Antonio Centenera. Por fim, um comentário sobre os dois exemplares mencionados.
O da Biblioteca Nacional, com suas folhas iniciais completas, não pode ser o
mesmo da descrição de Freire Carvalho onde estão dadas como ausentes.
Exemplares
únicos, o Tratado de Confissom e o Sacramental são remanescentes do
vandalismo dos homens e da ação destruidora do tempo para testemunharem o
princípio e a evolução da imprensa, essa formidável invenção da Renascença
difundida pelo protagonismo português na descoberta de novos mundos, malgrado
sua interdição no Brasil até a transferência da Corte em 1808.
Após
esta breve incursão pelo alvorecer da imprensa em Portugal, cumpre elaborar uma
cronologia de livros publicados à época, segundo coligi de fontes diversas
assentadas em constatações comprovadas.
De
acordo com Artur Anselmo(3) todos os impressores
que trabalharam em Portugal com caracteres de matriz gótica, do início da
atividade tipográfica até o final do século XV, estão distribuídos por três
ramos:
a)
ramo comum a impressores do Sacramental
e Tratado de Confissom.
b)
ramo comum a Johann Gherlinc e Rodrigo Alvares.
c)
ramo comum a Valentim Fernandes e Nicolau de Saxonia.
Quanto
aos livros publicados, esbocei uma síntese cronológica que contempla em sua
estrutura as mudanças ocorridas desde quando Queirós Veloso considerou, no
volume I da Bibliografia Geral Portuguesa
a Vita Christi “como a primeira obra
impressa entre nós em linguagem” (6).
Ordenados
a seguir, os livros listados auxiliam a melhor compreender a sequência de
publicações surgidas na fase pioneira da imprensa em Portugal:
1487
– Pentateuco – Primeiro livro
publicado em Portugal em hebraico (Faro, Samuel Gacon).
1488
– Sacramental – Tradução portuguesa
do texto de Clemente Sanchez de Vercial (Chaves, impressor ignorado).
1489
– Tratado de Confissom – Primeiro
livro impresso escrito em português (Chaves, impressor ignorado).
1494
– Breviarium Bracharense – Primeiro
livro publicado em latim em Portugal (Braga, João Gherlinc).
1495
– Vita Christi – Obra prima da
bibliografia portuguesa traduzida do latim. (Lisboa, Valentim Fernandes e
Nicolau da Saxonia).
1497
– Constituições que fez o senhor Dom
Diogo de Sousa Bispo do Porto – Primeiro livro que teria sido impresso por
um português. (Porto, Rodrigo Álvares).
Sem
a pretensão de esgotar a lista de incunábulos portugueses, relacionamos os
vinculados a eventos marcantes na bibliografia lusitana na esperança de que o
presente texto colabore com quantos se aventurem na senda dessa fascinante
aventura.
Bibliografia
01-
ANSELMO, Artur. Estudos de história do
livro. Lisboa: Guimarães, 1997.
189p.
02-
_____________. Livros e mentalidades.
Lisboa: Guimarâes, 2002. 191p.
03-
_____________. Origens da imprensa em Portugal. Lisboa:
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1981. 510 p.
04-
D. Manuel II. Livros antigos portugueses 1489 - 1600 da bibliotheca de
sua majestade fidelíssima. Braga: APPACDM, 1995. 633 p. v.1.
05-
HUE, Sheila Moura (Org.); PINHEIRO, Ana Virginia (Org.). Catálogo dos
quinhentistas portugueses da Biblioteca Nacional. 2. ed. Rio de
Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004. 157p.
06-
MARTINS, José V. de Pina. Tratado de
confissom: (Chaves, 8 de agosto de 1489). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa
da Moeda, 1973. 281p.
07-
MATOS, Manuel Cadafaz de. O Primeiro livro impresso em Portugal. Jornal
de Letras, [S.l.], 12 jul. 1987.
08-
PACHECO, José. A Divina arte negra e o
livro português: (séculos XV e XVI). Lisboa: Vega. 282p. (Coleção Artes /
História).
09-
PEIXOTO, Jorge. História do livro
impresso em Portugal. Coimbra, 1967. 30p.
10-
PINTO, Américo Cortez. Da famosa arte da imprimissão. Lisboa:
Ulisseia Limitada, 1948. 507 p.
11-
PRELO. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, n. 10, jan./fev. 1986.
Trimestral.
12-
SILVA, Innocêncio Francisco da. Diccionário
bibliográfico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859.478p. t.2.
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